Anúncio aos pastores. Fs 1513, fólio 15 b.
Os Flores Sanctorum, apesar do seu nome significar Florilégio de Santos, incluíam também comentários ao evangelho. É este o caso “Do euangelho pastores loquebantur Luc. secundo capitulo.[1]” No fólio 15 b do Flos Sanctorum de 1513,[2] uma estampa (88x58 mm.), ladeada por tarjas, ilustra o comentário a esta perícope evangélica. Como acontecia com o texto relativo ao Nascimento de Jesus Cristo [3], o presente texto não provém da Legenda Áurea do Beato Tiago de Vorágine O.P.
O nosso texto começa por citar, abreviadamente, a perícope evangélica proclamada na Missa da Aurora do dia de Natal: “[P]Astores loquebantur ad inuicem[4] dicentes. Transeamus vsque ad bethleem & videamus hoc verbum quod factum est. &c [quod dominus ostendit .&c.[5] nobis. Et venérunt festinántes: et invenérunt Maríam, et Joseph, et infántem pósitum in praesépio. Vidéntes autem cognovérunt de verbo, quod dictum erat illis de púero hoc. Et omnes, qui audiérunt, miráti sunt: et de his, quae dicta erant a pastóribus ad ipsos. María autem conservábat ómnia verba haec, cónferens in corde suo. Et revérsi sunt pastóres glorificántes, et laudántes Deum in ómnibus, quae audíerant, et víderant, sicut dictum est ad illos.[6]].
Em seguida recolhe, da perícope anteriormente proclamada na Missa da Meia-Noite, a referência aos pastores e ao anúncio que lhes é feito pelo Anjo: “Diznos sam matheus[sic][7] no euangelho que quando veo ho tempo que ouue de nasçer jhesu christo nosso senhor na çidade de bethleem. erã pastores naquella regiõ que guardauã gaados: & aa ora que nosso senhor jhesu christo nasçeo: logo estes pastores ouuirõ cantar os anjos que cantauam & louuauã a deos aquella noyte em que elle nasçeo: & ho cantar era este. Gloria in excelsis deo:” (Fs 1513, f. 15 b)
É este o momento recolhido pela estampa ilustrativa, na qual o Anjo, de que é apresentado o busto alado sobre o segmento de uma glória estilizada, sustenta uma filactéria, onde se lê: “Gloria in excelsis Deo.”
São figurados somente dois pastores. O da direita, genuflectindo, toca uma gaita-de-foles com a mão esquerda, enquanto aponta para o Anjo com a direita. Por cima deste pastor, vêem-se no monte umas ovelhas pastando. O companheiro, figurado de costas, segura na mão esquerda o cajado tradicional com ponta em forma de colher ou pá[8], enquanto protege com a direita os olhos, gesto iconográfico tradicional para denotar que o personagem em questão vê uma grande claridade[9]. À sua esquerda, vemos casas espalhadas pelo monte, decerto querendo representar a cidadezinha de Belém. No primeiro plano vê-se, da esquerda para a direita, um cantil, feito de uma cabaça, pendurado num arbusto, um prato fundo e uma colher, e um pequeno odre de vinho (chamado em castelhano “bota”).
Não achei, nos Flores Sanctorum posteriores, nenhuma ilustração referente a este tema, habitual nos ‘Livros de Horas’. Será este um indício de que muitas das imagens reproduzidas neste livro foram criadas para ilustrarem ‘Livros de Horas’?[10]
De notar que, neste comentário, o texto do hino angélico, que é referido como tradução do texto evangélico latino, não é somente o do Evangelho (que coloquei em itálico), mas o hino completo cantado na Liturgia:
“Gloria in excelsis deo: & in terra pax hominibus bone voluntatis. &c. que quer dizer. Gloria & louuor seja dada a deos poderoso nos altos çeeos & em a terra paz aos homens de boa voontade. A ty louuamos & a ty benzemos. a ty adoramos. a ty glorificamos. Graças te damos polla tua grande gloria. senhor deos rey çelestryal deos padre poderoso en todas as cousas. Senhor jhesu christo huum filho soomente gerado: senhor deos. Cordeyro de deos. Filho de deos padre que tiras os pecados do mundo lenbrate de nos. Tu que tiras os pecados do mundo reçebe nossos regos[sic[11]] & petições. Tu que te assentas a destra de deos padre: aue merçee de nos pecadores. Ca tu soo es sancto. tu, soo es senhor: tu soo es ho mays alto. Jhesu christo cõ ho espirito sancto na gloria de deos padre amẽ.” (Fs 1513, f. 15 b-c)
Aliás, este hino litúrgico foi composto inicialmente para ser cantado na Missa da noite de Natal, tendo sido posteriormente alargado o seu uso às outras missas festivas.
O texto evangélico, tanto do Anúncio do Anjo aos pastores como da ida destes últimos ao presépio, é de seguida comentado através de um conjunto de explicações alegóricas, introduzidas pelo convite “Considerae amigos os cantares & duçuras desta noyte.” Primeiro vem o significado dos anjos: “Os anjos que cantã significã os douctores da sancta ygreja.”
Segue-se a explicação das trevas nocturnas em que a cena se passa: “A noyte em que naçeo jhesu christo que era em treeua significa este mundo que estaua em treeua que atee que elle naçeo todas as almas hyam em treeuas: assy as dos boos como as dos maaos”. - Alusão ao Limbo dos Pais.
Curiosa, na sequência da afirmação anterior, é a explicação das três missas de Natal: “Ca as tres missas que se dizi[sic]em este dia significã tres tempos conuem a saber huum ante da ley: & outro des que foy dada a ley: & outro he este em que agora estamos que he dicto tempo de graça."[12] Ante Legem: “Ha missa que se diz aa meya noyte significa o tempo de antes que ha ley fosse dada. porque eram todos em treeuas & nom sabyã quando faziã mal nem quando faziã bem: & eram todos perdidos”. Sub Lege: “Ha missa que se canta aa alua significa ho tempo da ley & dos mandamentos que ja os poouos hyam sayndo de treeuas: ca deantes nom sabiam nem conheçiã nada. E de hy adiante souberom & conheçerõ deos; ca fallou deos com elles & muytos anjos que lhe mandou. mas por esso ley de deos nõ os escusou de hyr ao inferno.” Sub Gratia: “Ha missa que se canta de dia significa o tempo de graça porque neste tempo nos fez deos bem & faz cada di. Ca despoys que naçeeo jhesu christo somos alumiados & craros & por esta rezam he dicto tempo de graça.”
Finalmente, o significado dos pastores, que, como é natural numa explicação alegórica, remete para os pastores da Igreja: “A significaçã dos pastores que vellã segundo diz ho euangelho esto he amoestaçã aos christaãos a que tenham cuydado .s. rectores curas & capellaães da ygrejas: que soõ pastores dos seus pouoos em sancta gloria: ca deuem vellar & gurdar[sic] seu pouoo & pregarlhe & amoestralhe em maneyra que o lobo que he diaboo nõ leue seus[sic] ouelhas que he ho pouoo cujos pastores & guardores elles som. Ca os pouoos dos christa-[f. 15 d]ãos sam emcomendados aos prelados & capelaães da madre sancta ygreja.”
Comentando a perícope evangélica da Missa da Aurora, mais explicações alegóricas:
“E diziã aquelles pastores huns aos outros. Transeamus vsque ad bethleem. que quer dizer passemos atee bethleeem & vejamos esto que os anjos disserom & veremos que cousa he de jhesu christo que dizẽ que he naçido. E diz ho euangelho que vierõ muy asynha & aa pressa. significa que sem nenhũa detença vamos a confessar nossos pecados. & venhamos a penitençia: & da maa vida venhamos a boa. E assy como elles passarom aa pressa. assi nos da a emtender que deuemos de hyr a jhesu christo por boa via & por boas obras quanto mays podemos." - É o momento de passar à exortação moral e ao convite à recepção do sacramento da penitência.
A explicação etimológica do nome da cidade de Belém, dá ensejo a uma alusão à Eucaristia e à igreja onde a reserva eucarística é guardada: “Bethleem quer tanto dizer como casa de pam. olly[sic] onde naçeeo jhesu christo: em outro tempo foy chamada eufrata. que quer dizer çidade de grande avondamento & polla grande auondança que nelle avia le pos jacob nome bethleem. Este bethleem significa ha ygreja: que he dicta casa de pam. Honde diz ho euangelho que disse jhesu christo: eu som pã verdadeiro que do çeeo desçendi.”[13]
Jesus é apresentado como exemplo de humildade: “E quando os pastores chegarom a bethleem acharõ a sancta maria & a joseph & a jhesu christo infante pequena[sic] enuolto em pannos villes: & posto na manjadoyra. Estaua jhesu christo emuolto em pannos vijs por nos dar enxempro que nõ amemos nem prezemos grandes pompas nem riquezas deste mundo:”, Ele que é Nosso Senhor: “& jazia na manjodayra[sic] que he gouerno das bestas: significa que elle he nosso gouerno & nossa vida: a qual nos nã podemos auer senã por elle.”
A nova referência aos pastores, dá novo ensejo a falar dos prelados, e os admoestar a serem bom pastores do rebanho que lhes foi confiado: “Estes pastores que vierom a nosso senhor jhesu christo: & o nã quiserom emcobrir: significa os prelados & gouernadores das ygrejas: nã deuẽ emcobrir os sacramentos de deos nẽ os seus feytos: mas deuẽ preegar & confessar & amoestar seus pouoos por que conheçã a deos.”
A atenção volta-se agora para Nossa Senhora, a mãe do Salvador: “Maria autem conseruabat omnia verba hec conferens in corde suo. Esto diz que sançta[sic] maria gardaua[sic] todas estas pallauras em seu coraçam: que cuydaua em ho fecto de jhesu christo que sabya que era deos verdadeyro filho de deos & que por elle auya ho mundo de seer saluo: & ella ho cuydaua muy bem em seu coraçõ.”
A última frase dá ensejo a falar da Salvação trazida por Jesus Cristo na Sua incarnação, morte e glória, da qual nos quer fazer participantes: "E[t] reuersi sunt pastores laudantes & glorificantes deum. Diz que estes [f. 16 a] pastores como virõ jhesu christo naçido & forõ çertos delle tornarõ se alegres louuando & benzendo a deos. E nos assi deuemos de fazer como os pastores: benzer & louuar: & glorificar o nome de deos verdadeiro jhesu christo que naçeo en tal nocte como esta: que elle que he ygual do padre na verdade: & se quis abayxar por nos ha tomar nossa carne. na qual tomou morte & payxã por nos saluar que elle nos liure de poder de nossos jmijgos E deuemos melhorar nossas vidas & hõrrar ho seu naçimento: que sejamos en amor & caridade: por que mereçamos hyr aa sua gloria.”
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Texto publicado em: TRAÇO DE UNIÃO, nº 169 (Dez. 2007), pp. 8-12.
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[1] Na Leyenda de los Santos da British Library (LsBL), [Burgos, Juan de Burgos, 1499?], f. XIX b, diz somente: “Del euangelio pastores loquebantur”. Não tem ilustração.
[2] Flos Sanctorum em linguagem português, Lisboa, Hermão de Campos & Roberto Rabelo, 1513 (Fs 1513).
[3] Ver TRAÇO de UNIÃO - Boletim do Dominicanos - Portugal, nº 165, pp. 3-7.
[4] Na LsBL, f. XIX b, o texto evangélico tem as palavras colocadas noutra ordem: “[A]d invicem loquebantur pastores”.
[5] A citação é mais completa em LsBL, f. XIX(.c.iij) b-c.
[6] Completei a citação a partir do texto do Evangelho proclamado na Missa da Aurora (Lc 2, 15-20).
[7] aliás Lucas, com é referido no título, na versão portuguesa. Em LsBL, f. XIX c, existe o mesmo erro: “Dizenos sant matheo”. O comentário refere-se Lc 2, 8-14 - a segunda parte do Evangelho proclamado na Missa do Galo (Lc 2, 1-14).
[8] Ver a este propósito, embora posterior, a porta do sacrário da capela da Via Sacra, em Viseu - António José de ALMEIDA, Retábulos Maneirista e Barrocos em Viseu (trabalho de Seminário de História da Arte orientado pelo Dr. Flávio Gonçalves), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1976-77 (inédito), p. 29; Maria de Fátima EUSÉBIO, “A iconografia do sacrário da Capela da Via Sacra de Viseu”, in Actas do II Congresso Internacional do Barroco, Porto, DCTP-FLUP, 2003, pp. 495-496.
[9] Veja-se, por exemplo, o caso da representação da Transfiguração, como refiro num meu artigo, publicado na revista Brotéria, Lisboa (ISSN 0870-7618), vol. 142, nº4 (Abril 1996), pp. 413-424: Fr. António José de Almeida OP, “Metamorfose do olhar”.
[10] A descrição desta estampa xilográfica é tomada da minha tese de Doutoramento em História da Arte, orientada pelo Pe. Prof. Doutor Fausto Sanches Martins CSsR, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Fr. António-José de ALMEIDA OP, IMAGENS DE PAPEL. O 'Flos Sanctorum em linguagem português', de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário OP - A problemática da sua ilustração xilográfica, Porto, [Texto policopiado], 2005, IIIª parte, 3.1/3.
[11] por ‘rogos’.
[12] Ver a divisão da História Sagrada em: Louis RÉAU, Iconografía del arte cristiano, Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996-2000 (1ª ed.) (ISBN 84-7628-164-1. 6 vols.): tomo 1 - Iconografía de la Bíblia, 1996 (vol. 1- Antiguo testamento, vol. 2 - Nuevo testamento).
[13] Ver a este propósito a minha tese de Mestrado em História da Arte, orientada inicialmente pelo Prof. Doutor Artur Nobre de Gusmão e depois pelo Prof. Doutor Vítor Serrão, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: Fr. António José de ALMEIDA O.P., «Imagines Sacrae» no Convento de São Domingos de Benfica, Lisboa, [Texto policopiado], 1999, I vol., pp.128-131: “O Natal e a Eucaristia”.
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