segunda-feira, 5 de novembro de 2007

S. Nicolau, no 'Flos Sanctorum' de 1513


Pequena estampa de São Nicolau (1.)


No cimo da portada que orna a folha-de-rosto, à esquerda, vemos uma pequena estampa (34x25 mm.) que representa o bispo São Nicolau de Mira, no tradicional acto de abençoar três crianças, de que só se vêem duas, dentro de uma barrica [1]. Sobre a túnica vislumbra-se a estola por baixo da capa de asperges colocada sobre os ombros e apertada à frente por um grande firmal oblongo. A mitra cobre-lhe a cabeça e segura na mão direita o báculo pastoral.
A entalhadura que serviu de matriz a esta estampa foi copiada em espelho, como se pode verificar pelo facto de o bispo abençoar com a mão esquerda, quando habitualmente o faz com a direita, como, aliás, se verifica na estampa com a mesma temática, mas de grandeza média, inserida no fólio 9 d desta obra. Era muito frequente o entalhador de uma matriz xilográfica se esquecer de virar o desenho no momento de fazer a entalhadura, especialmente quando se tratava de cópia de outra estampa, realizada mediante decalque.
[3] Erro semelhante é corrente hoje em dia quando se imprime uma imagem a partir de um slide: é frequente sair invertida em relação ao original. Trata-se pois de um erro frequente em trabalhos tipográficos. Talvez seja somente devido à orientação da figura de São Nicolau, virado para a nossa direita, o factor que determinou a colocação desta imagem do lado direito de Cristo na cruz, que atrás descrevemos, lugar tão importante do ponto de vista da colocação das imagens numa igreja, o chamado lado do Evangelho.[4] Também pode ser que se trate de um santo de especial devoção dos impressores. É padroeiro dos mareantes, devido a um milagre realizado por sua intercessão ainda era vivo na terra.
E huum dia huuns marinheyros. ouuerõ muy grande tempestade & com muytas lagrimas disserõ assy. Ay sam nicolao seruo de deos. se assy he ho que dizem de ty prometemos te que te mandemos offertas. & estaremos en tua casa. E nesto apareçeo huum homem em ha companhia en sua semelhança. & disselhes vedesme aqui que me chamastes. & cõmeçoulhes logo aajudar em todas armaduras & aparelhos da naue: & logo çessou a tempestade E quando vierõ aa sua ygreja logo ho conhecerõ ainda que lho nenguem nõ mostrou: E emtonçe louuarõ a nosso senhor deos & a elle que os liurara. E disselhes que a misericordia de deos os liurara & a sua boõa ffe.[5] (Flos Sanctorum 1513, f. 10 b)
O culto deste santo espalhou-se por todo o mundo cristão, e é particularmente venerado nos países germânicos, de onde é natural pelo menos um dos impressores: Herman de Kempis, aportuguesado Hermão de Campos. Sabemos como figuras de santos fazem parte de marcas de impressores, como é o caso da oficina saragoçana que foi de Paulo e Joan Hurus, e depois de Jorge Coci [S. Sebastião & São Tiago] (Lyell, J., 1997, pp. 161-162).
Preenchendo o espaço livre entre esta estampa, menor que as seguintes, e a margem superior, foi colocada, como já dissemos (1.1.1. Folha-de-rosto), uma pequena tarja.

No Flos Sanctorum de 1513, esta xilogravura ilustra também, no fólio 78 c, a ‘legenda’ da Trasladação do corpo de Santo Ildefonso de Toledo, intitulada:Da trasladaçom & achamento do bemauenturado senhor sancto yllefonso arçebispo de toledo & em que maneira foy achado o seu corpo em çamora.Terá o tipógrafo entendido salmoura ou jogado maliciosamente com as palavras?


Extracto de: Fr. António-José de ALMEIDA OP - IMAGENS DE PAPEL. O Flos Sanctorum em linguagem português, de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário OP - A problemática da sua ilustração xilográfica. Porto: [Texto policopiado], 2005. Tese de doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. IIIª Parte, 1/8.


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[1] Sobre o episódio, lendário, a que se refere, veja-se, mais à frente o apartado 4.9.B2/2. [Texto trascrito a seguir].
[3] Devemos esta informação ao Professor Artur Anselmo, em conversa pessoal.
[4] Vejam-se, a este propósito, as considerações que tecemos num meu artigo ( A.-J. ALMEIDA, 2003, p. 25 e nota 41).
[5] O itálico, indicando o discurso directo, é nosso em todas as citações que se seguem.


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[Estampa ilustrativa da Vida do Santo (29.), fólio 9 vº (d)]


São Nicolau de Mira/Bari (†ca.350), bispo de Mira

O episódio figurado é o da lenda da ressuscitação de três meninos clérigos. Conta esta lenda que, num tempo de fome, um estalajadeiro roubou três meninos que matou, esquartejou, e meteu os bocados dos corpos dentro de uma barrica com sal para servir a sua carne aos hóspedes. O santo bispo, traçando o sinal da cruz, fez com que voltassem à vida e inteiros.

Roger Wieck
(1997, p. 115) afirma que esta estória parece ter tido a sua origem em França, pertencendo ao século XII a sua mais antiga referência, embora seja sem dúvida mais antiga. Segundo este mesmo autor, ela terá derivado de uma má leitura das três bolas amarelas que são atributo do Santo, confundidas com três cabeças. Ora as três bolas douradas representam as três bolsas de dinheiro que serviram de dote a três moças votadas à prostituição.
Conta assim este episódio o nosso livro:

E despoys que ho pay & a may forom mortos [Saam nicholao] começou de cuydar em que maneyra despenderia as riquezas que lhe leyxarõ nõ em louuor do pouoo mas a seruiço de deos. E neste tempo huũ seu vezynho assaz fidalgo tynha tres filhas dõzelas virgens & por rezã da proueza en que era: as queria fazer maas molheres porque se podesse gouernar & manteer com o ganho dellas. E despoys que o soube sam nicolao aborreçeo este pecado: & de noyte e em escõdido tomou hũa massa de ouro emborulhada em huũ pano & deytoulho em casa per hũa fresta & foysse. E ho boo homem leuantouse polla manhaã & achou o ouro: & deu graças a deos & casou a filha mayor. E despoys de hy a pouco tempo ho seruo de deos fez outro tanto como a primeyra vez. E despoys que aquelle homem ysto vyo começou de louuar muyto a deos & a marauilharse & espreytou por veer quem era aquelle que lhe acorria a tã grande coyta & mingoa. E despojs a pouco tempo deytou outra massa dobrada em sua casa: & o boõ homem acordou ao golpe do ouro & foy apos sam nicolao, & des que ho conheçeo deytouse a seus pees & quisera lhos beijar: mas elle nõ lho quis cõsentir: ãtes lhe rogou que o nõ descobrisse em sua vida.[1]” (Flos Sanctorum 1513, f. 10 a).

Porém Émile Mâle [2], seguido por Metford [3], faz derivar a lenda de outro episódio da vida do Santo, que o nosso livro relata do seguinte modo:
o emperador (...) mãdou que os metessem [aos três príncipes] em huũ ca.çere.[sic] & que os matassem aquella noyte (...) e elles estãdo assy em oraçõ aquella noyte, apareçeo sã nicolao ao emperador (...) E assy mesmo espantou ao prefeto que era juiz mayor que acõselhara ao emperador (...) E o emperador (...) disselhes: hydevos & agradeçey a deos que vos liurou pello rogo de sam nicolao. (...) (Flos Sanctorum 1513, f. 10 c-d)

Estampas semelhantes aparecem-nos em duas obras atribuídas às oficinas de Burgos, nos finais do século XV: as Orationes a plenum collectae, atribuída a Fradique de Basilea, em 1498 [4] (reestampando uma xilogravura que já tinha aparecido, em 1494 no Flos Sanctorum Romançat, impresso em Barcelona, no fólio 15 b); e a do fólio 12 c da Leyenda delos Santos da British Library [5]
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Na estampa do fólio f. 9 d do Fs 1513, assim como nas outras, espanholas, aqui referidas, vêem-se melhor os três meninos do que na estampazinha com a mesma temática que figura no rosto do Flos Sanctorum de 1513 e depois é repetida no corpo do texto, que atrás (1/8.) analisámos [Texto reproduzido acima].


Extracto de: Fr. António-José de ALMEIDA OP - IMAGENS DE PAPEL. O Flos Sanctorum em linguagem português, de 1513, e as edições quinhentistas do de Fr. Diogo do Rosário OP - A problemática da sua ilustração xilográfica. Porto: [Texto policopiado], 2005. Tese de doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. IIIª Parte, 4.9.B2/2..

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[1] O episódio dos três dotes é anterior a S. Nicolau ser bispo, o que se pode ver num quadro do ciclo da vida deste santo pintado pelo Beato Fra Angelico, que neste episódio o figura jovem com traje civil (Tout l’oeuvre peint de Fra Angelico, Paris, Flammarion, ©1973, PL. XX-XXI).
[2] Émile MÂLE, L'Art religieux du XIII.e siècle en France. Étude sur l'iconographie du moyen âge et sur ses sources d'inspiration, reimpressão da 8ª ed. (1948), Paris, Le Livre de Poche - Librairie Armand Colin, 1968 (Le Livre de Poche. Série Art), vol. 2, pp. 271-272.
[3] J[ohn] C. J. METFORD, Dictionary of Christian Lore and Legend, London, Thames and Hudson, © 1983 (ISBN 0-500-27373-1), p. 181; embora não o cite.
[4] Orationes a plenum collectae, [Burgos 1498] (1ª impr. 1494) (Francisco VINDEL, El Arte Tipográfico en España durante el siglo XV, Madrid, Ministerio de Asuntos Exteriores -Dirección General de Relaciones Culturales, 1945-51, vol. VII, p. 331).
[5] Ls BL, f. 12 c.
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Ver também: Fr. António-José d’ALMEIDA OP - "Desencontros entre texto e imagem ‘ilustrativa’, no Flos Sanctorum de 1513", in CULTURA, nº 21. Apartado I.2.2: "São Nicolau, ‘ilustrando’ Santo Ildefonso".

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